peço licença para te ocupar
alguns minutos com uma carta mal escrita. hoje, em especial, temo ser muito
mais prolixa que o comum. sei que de onde está provavelmente ainda tenha uma
longa caminhada, mas, se puder é claro, fique por mais essa carta. tentarei ser
breve, eu prometo.
não estou aqui para lamuriar uma
proximidade que talvez nós dois nunca tenhamos compartilhado. tampouco farei
disso um discurso que é comum às guirlandas de flores que enfeitam os
cemitérios. farei disso uma conversa de bar, pode ser? uma coisa que sei que
nós dois vamos conseguir aguentar até o fim.
no momento em que recebi a
notícia de que tinha nos deixado, uma porção de memórias me veio à cabeça.
algumas você estava presente, outras você me fez reviver nesse breve segundo em
que meu coração parou desacreditado com
sua partida. tentarei encadear todos esses insights de uma forma lógica
para que possa me entender (desculpe se não conseguir, sou péssima em
ordenações mentais).
talvez não se lembre da conversa
que tivemos no único e malfadado dia de bar em que eu estava presente. enquanto
eu tomava uma caipirinha tão verde que chegava a ser neon junto com maria, você
e bianca me explicavam como cuidavam dos cabelos cacheados. lembro até de ouvir
algumas broncas da bianca por você nunca usar os cremes que ela indicava. acho
que aquele foi um dos poucos dias em que me senti em casa fora de casa.
ao mesmo tempo me vi passando por
semana passada de novo. summer, um senhor amigo de quatro patas morreu sozinho,
no quintal. você me fez lembrar o quanto eu já tinha me esquecido.
ao mesmo tempo lembrei do quanto
aprendi sobre relações e sobre sociologia em todos os trabalhos que nos
apresentou. lembrei do canto de resistência negro que apresentam para nós em
história da arte, e também de como me ensinou que uma obra pode ser feita em
menos de trinta segundos num banheiro sujo, vestido apenas com uma ideia genial
e um telefone com câmera fotográfica.
lembrei também que há duas
semanas natália morreu atropelada por um carro na frente da faculdade. era
véspera da páscoa. hoje você me fez lembrar porque eu não passei pelo corredor
dos ovos de chocolate nos mercados esse ano. me fez lembrar o quanto uma dor
não passa nunca.
ao mesmo tempo lembrei que não
nos deu chocolate no dia das mulheres. que nos ensinou que a memória de um dia
não deve ser nunca apagada. que o respeito pela luta dos outros está sempre
acima de um chocolate (por mais formigas que eu e as meninas da sala sejamos).
também lembrei que há quatro anos
carol morreu atingida por um tiro na nuca porque virou as costas após ser
assaltada. ela tinha quinze anos. você me fez lembrar que por mais que a gente
acabe rindo no final, algumas coisas nunca serão entendidas.
ao mesmo tempo lembrei que você
quase não saiu na foto que colocamos na cápsula do tempo por ter chegado
atrasado. e, nesse breve momento, fui transportada para 2035, numa
possibilidade de chorar por não ter te esperado, e não de saudade. graças a
deus você está lá. você está lá conosco.
não só lá, como aqui também.
como eu previa, já esgarcei
demais sua paciência. peço desculpas por isso. porém, antes de me despedir,
gostaria de compartilhar uma teoria.
acho que você, como artista,
arquiteto, sociólogo, brasil e mais um milhão de coisas, não cabia mais no
próprio corpo. precisava de mais espaço para ocupar. então, de uma forma sagaz,
você foi conquistar esse espaço. com partes de você em outras pessoas. pessoas
que também serão brasil a partir de agora.
e é por isso que eu sei que em
algum momento, em alguma praça pública, em algum lugar que me lembre muito
você, darei de cara com seu coração. e, acredite, vou te reconhecer. saberá
disso quando me vir fazendo uma breve reverência. pelo que nos ensinou, pelo
que nos ensinará, pelo que não nos deixará esquecer e por você. só por você.
não terminarei, portanto, com um
adeus. acredito que essa despedida definitiva não caiba por aqui.
terminarei com um simples, porém
muito sincero,
até breve.
OBS.: escolhi uma carta vermelha
porque, veja só, também me fez lembrar da única coisa (útil talvez) que te dei.
um pequeno envelope petista com uma breve descrição dos Centros Educacionais
Unificados. obrigada pelas lembranças, querido. muito obrigada.