quinta-feira, 7 de abril de 2016

por gabriel

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querido gabriel,

peço licença para te ocupar alguns minutos com uma carta mal escrita. hoje, em especial, temo ser muito mais prolixa que o comum. sei que de onde está provavelmente ainda tenha uma longa caminhada, mas, se puder é claro, fique por mais essa carta. tentarei ser breve, eu prometo.

não estou aqui para lamuriar uma proximidade que talvez nós dois nunca tenhamos compartilhado. tampouco farei disso um discurso que é comum às guirlandas de flores que enfeitam os cemitérios. farei disso uma conversa de bar, pode ser? uma coisa que sei que nós dois vamos conseguir aguentar até o fim.

no momento em que recebi a notícia de que tinha nos deixado, uma porção de memórias me veio à cabeça. algumas você estava presente, outras você me fez reviver nesse breve segundo em que meu coração parou desacreditado com  sua partida. tentarei encadear todos esses insights de uma forma lógica para que possa me entender (desculpe se não conseguir, sou péssima em ordenações mentais).

talvez não se lembre da conversa que tivemos no único e malfadado dia de bar em que eu estava presente. enquanto eu tomava uma caipirinha tão verde que chegava a ser neon junto com maria, você e bianca me explicavam como cuidavam dos cabelos cacheados. lembro até de ouvir algumas broncas da bianca por você nunca usar os cremes que ela indicava. acho que aquele foi um dos poucos dias em que me senti em casa fora de casa.

ao mesmo tempo me vi passando por semana passada de novo. summer, um senhor amigo de quatro patas morreu sozinho, no quintal. você me fez lembrar o quanto eu já tinha me esquecido.

ao mesmo tempo lembrei do quanto aprendi sobre relações e sobre sociologia em todos os trabalhos que nos apresentou. lembrei do canto de resistência negro que apresentam para nós em história da arte, e também de como me ensinou que uma obra pode ser feita em menos de trinta segundos num banheiro sujo, vestido apenas com uma ideia genial e um telefone com câmera fotográfica.

lembrei também que há duas semanas natália morreu atropelada por um carro na frente da faculdade. era véspera da páscoa. hoje você me fez lembrar porque eu não passei pelo corredor dos ovos de chocolate nos mercados esse ano. me fez lembrar o quanto uma dor não passa nunca.

ao mesmo tempo lembrei que não nos deu chocolate no dia das mulheres. que nos ensinou que a memória de um dia não deve ser nunca apagada. que o respeito pela luta dos outros está sempre acima de um chocolate (por mais formigas que eu e as meninas da sala sejamos).

também lembrei que há quatro anos carol morreu atingida por um tiro na nuca porque virou as costas após ser assaltada. ela tinha quinze anos. você me fez lembrar que por mais que a gente acabe rindo no final, algumas coisas nunca serão entendidas.

ao mesmo tempo lembrei que você quase não saiu na foto que colocamos na cápsula do tempo por ter chegado atrasado. e, nesse breve momento, fui transportada para 2035, numa possibilidade de chorar por não ter te esperado, e não de saudade. graças a deus você está lá. você está lá conosco.
não só lá, como aqui também.

como eu previa, já esgarcei demais sua paciência. peço desculpas por isso. porém, antes de me despedir, gostaria de compartilhar uma teoria.

acho que você, como artista, arquiteto, sociólogo, brasil e mais um milhão de coisas, não cabia mais no próprio corpo. precisava de mais espaço para ocupar. então, de uma forma sagaz, você foi conquistar esse espaço. com partes de você em outras pessoas. pessoas que também serão brasil a partir de agora.

e é por isso que eu sei que em algum momento, em alguma praça pública, em algum lugar que me lembre muito você, darei de cara com seu coração. e, acredite, vou te reconhecer. saberá disso quando me vir fazendo uma breve reverência. pelo que nos ensinou, pelo que nos ensinará, pelo que não nos deixará esquecer e por você. só por você.

não terminarei, portanto, com um adeus. acredito que essa despedida definitiva não caiba por aqui.

terminarei com um simples, porém muito sincero,

até breve.

OBS.: escolhi uma carta vermelha porque, veja só, também me fez lembrar da única coisa (útil talvez) que te dei. um pequeno envelope petista com uma breve descrição dos Centros Educacionais Unificados. obrigada pelas lembranças, querido. muito obrigada.