quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Constelação particular.

Faz um tempo desde a última vez que troquei um palavreado chocho por alguns segundos de sabedoria profanados por sua boca. Desrespeitoso como sempre, lembro de todas as vezes - uma a uma - que tirei meu chapéu em sinal de respeito às palavras desonrosas que espalhava pelo ar, era quase um deleite ouvir sua voz soar pelos quatro cômodos da casa. Era ainda mais maravilhoso quando me fazia sentir as punhaladas que desferia ao mundo, mesmo sem usar de força física. Cada uma como um apazíguo ao meu coração infantil, sem cacife para revidar as trapalhadas maltrapilhas e as peças que foram pregadas em meu caminho. Através de você, e somente de você, que me vinguei da vida.

Honestamente, não sei porque - até hoje - resolveu partir. Imagino que a pequenez do cômodo no qual se escondia dos raios solares o tenha angustiado, mudado seu discurso, e te transformado em um nômade das galáxias. Assim como o pequeno príncipe. Sei que se lembra de todas as falas, você dispensava o livro para contar a história para mim, um pouco antes da hora do sono. Para confessar, sempre te imaginei voando em uma nave com estoque de balas de goma, obras de Tolstói e Dostoiévski, além do seu inseparável "A Metamorfose", do menino Kafka.

Você sempre esteve, não sei como explicar claramente, em transição... Acho que essa palavra cabe. Transição. Todo dia, quando chegava para um café, o sabor que me servia era diferente. Quase como se o pó do café mudasse dia após dia, mesmo sem vencer ou passar por qualquer dano. Agora, um pouco mais consequente de meus atos, entendo que não era o pó. Era a mão. A sua mão mudava o jeito de fazer café todos os dias. Do mesmo jeito que você mudava o jeito de segurar o livro, a xícara, o jeito de atender a porta e o jeito de olhar pra mim. A única coisa que permaneceu a mesma em você foi meu porto seguro, que não arredava pé do seu colo.

Houve um segredo desde o início. Não sei se nos seus olhos havia uma mensagem, mas sempre me vi avisada que sua partida era iminente. E jamais pensei em te prender aqui. É isso o que vim te sussurrar, mesmo que por linhas afonemadas - se me abre exceção para um neologismo. Espero que saiba, em qualquer mundo perdido do universo que tenha construído um novo barraquinho e faça café quentinho todo dia, que jamais o quis prender à rédeas. Eu gostava do gosto diferente do seu café todo dia, e isso é tudo.

Apesar desse último parágrafo, estou quase convencida que sabia muito bem que podia partir a qualquer momento. E que eu ficaria bem, mesmo  sem seu colo, seu café, suas profanações e minhas vinganças apropriadas. Você sempre sabia de tudo, não é? Sabia quando eu ia bater a sua porta, por isso a abria de jeitos diferentes. Sabia que eu não gostava de café, por isso mudava o gosto dele, apenas para me manter interessada. Sabia que eu entendia muito mais da história quando você não lia, mas sim contava olhando para os meus olhos, para que pudesse enxergar o meu pequeno príncipe em ti. Sabia que eu precisava de colo, e por isso nunca o tirou do lugar.

Em alguns momentos, sinto que veio para a terra viver apenas para mim por um tempo. E partiu. Porque tinha outras missões, ou porque cansou do quarto  com paredes mal lavadas. Porque injuriou das balas de goma daqui e quis experimentar a de outros universos. Antes de você partir, eu não tinha hábitos. A vida passava à cavalo por cima dos meus projetos minuciosamente desenhados e eu montava outros. Sem refazer. Olhando para o que ficou para trás, sem me importar com o que carregava em mãos. Mas hoje... Hoje não preciso mais me vingar da vida. Carrego com paixão o que está em meus braços, olhando para a frente. Olhando para o céu. Olhando para você ai em cima, em sua nave, comendo balas de goma espaciais e contando Guerra e Paz para si mesmo. Sem paredes. Sem se esconder em um quarto escuro. Assim como eu não me escondo mais.

Sei que não tem tempo para ler um relato nostálgico de uma louca que invadia sua casa todos os dias para tomar café. Só queria fazer um convite para quando estiver por aqui de novo... Passe na minha casa. Faço um café caprichado, com cheiro de campo e gosto de cidade grande. Passe para saber que seu colo deu resultado e que não existe remorso nenhum entre nós. Passe aqui, deixe seu número, sua caixa  postal para que possa te enviar o resto dos livros que não couberam em sua pequena nave. Só passe aqui. Passe por mim.

Passe para eu ter a oportunidade, pelo menos por essa vez, de dizer tchau.  

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